Soja orgânica. Foto: Federação das Industrias do Estado do Paraná.
Doze porcento da população brasileira se declara vegetariana, segundo pesquisa realizada em abril deste ano pelo Ibope em 142 cidades brasileiras. O número representa um aumento de 75% em relação a 2012. A pesquisa também mostrou o interesse crescente da população por produtos veganos, que excluem qualquer elemento de origem animal.
A soja é uma alternativa comum para quem segue este tipo de dieta, seja através da carne de soja, na farinha, leite, iogurte ou tofu. Mas quem opta por este alimento se depara com outro dilema: a soja é a cultura que mais utiliza agrotóxicos no Brasil, respondendo por 47% de todo o pesticida vendido no país, segundo dados do Atlas dos Agrotóxicos, além de seu cultivo em grandes áreas de monocultura ser comumente associado ao desmatamento.
Uma realidade que incomoda a jornalista Fernanda da Costa, moradora de Porto Alegre, vegetariana há dez anos e vegana há quatro: “Uma hora eu percebi que estava consumindo muita soja, e como a maioria da soja do Brasil não é orgânica, além de consumir muito soja eu estava consumindo muito agrotóxico”. Foi então que Fernanda começou a buscar a soja orgânica: “O meu sonho seria consumir só soja orgânica, mas não é a realidade hoje, eu ainda consumo vários processados de soja que não é orgânica”.
Uma das poucas opções que ela encontrou em Porto Alegre foi a Sattva Produtos Naturais, que produz hambúrgueres, kibes e salsichas, tudo à base de ingredientes orgânicos. Encontro um dos donos do negócio em uma manhã de sábado ensolarado, na feira ecológica do Bom Fim, a mais tradicional de Porto Alegre. Este é uma das seis feiras em que Shiva Braga expõe seus produtos.
Shiva explica que vem de família vegetariana, que sempre buscou na soja uma fonte de proteína. O hábito deu origem ao negócio, e ao longo de quinze anos a empresa construiu uma parceria com três produtores rurais que garantem a estabilidade no fornecimento do grão. A maior dificuldade, segundo o comerciante, está na desconfiança do consumidor, que vêm crescendo nos últimos anos: “De modo geral, o consumidor já não acredita na possibilidade da soja orgânica. Porque enfim, a gente sabe qual o cenário da produção de soja no Brasil, e é um cerco que se fecha, a gente deve ter no máximo 5% da produção orgânica no Brasil, nem isso. A aceitação cada vez se limita mais”. A resistência dos clientes é tanta que obrigou a família a mudar receitas e oferecer novos produtos, que não incluíssem a soja.
A desconfiança transparece no relato de Nicole Vargas da Rocha, uma das clientes atendidas na banca de Shiva. Vegetariana há quinze anos e em transição para o veganismo, Nicole costuma comprar produtos à base de soja orgânica na feira da cidade onde mora, em Caxias do Sul: “Lá tá escrito orgânica né, se é ou não ou não sei dizer”.
Um setor sem números
O primeiro desafio para quem quer entender o mercado de produtos orgânicos no Brasil é a falta de dados. O Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos é extremamente falho, o que não permite que possamos sequer estimar o tamanho da produção total, que dirá de um produto específico. A única conclusão possível é que o número de produtores cadastrados vem crescendo a uma média de 20% ao ano. Em 2010, havia 5.934 produtores inscritos no Cadastro, número que saltou para 17.451 em 2017. Uma análise preliminar mostra que pelo menos 252 deles afirmam ter a soja como um de seus cultivos.
Mas segundo a coordenadora de Agroecologia e Produção Orgânica no Ministério da Agricultura, Virgínia Mendes Cipriano Lira, o carro-chefe da produção de orgânicos no Brasil continua sendo as hortaliças. Em relação à soja, a única informação é que a maior parte da produção se dá nos três estados do Sul: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A Gebana é uma das empresas que atuam neste mercado, comprando e revendendo os produtos, além de prestar assessoria técnica e dar suporte aos agricultores. Atualmente, a empresa conta com uma rede de 120 produtores de orgânicos espalhados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Paraguai. A Gebana comercializa anualmente 10 mil toneladas de soja orgânica, além de outras 10 mil toneladas de outros grãos, como milho, trigo, aveia branca e canola.
Ao contrário dos demais produtos, a maioria da soja (70%) vai para o exterior, mais especificamente para a União Europeia, um mercado com maior poder aquisitivo e mais avançado em termos de consciência ambiental. Mas para Marcio Alberto Challiol, agrônomo e gerente agrícola da Gebana, aos poucos esta onda está chegando no Brasil: “A gente agora começou a entrar em uma lógica de diversificação dos produtos orgânicos. Antes era muito focado em hortifruti, hoje você encontra facilmente geleias, ovos, mesmos grãos. Tem cada vez mais opções no mercado”.
A percepção de que os orgânicos fazem parte de um caminho sem volta é compartilhada por Virgínia Lira: “A gente observa o crescimento dos produtores cadastrados ano a ano, independente da crise econômica e de outras adversidades como o convívio com agrotóxicos e os transgênicos. Então é uma resposta a uma demanda dos consumidores brasileiros, que buscam cada vez mais produtos com respeito ambiental e social, que são valores que o produto orgânico tem agregados. É um mercado muito promissor e eu acho que é um processo irreversível”. Em relação à falta de informações sobre o setor, Virgínia afirma que um novo cadastro está sendo construído. A previsão é que até o final do ano o Ministério possa fornecer relatórios mais detalhados sobre a produção de orgânicos no Brasil.
“Diziam que a gente era burro, atrasado”
A soja orgânica que Shiva transforma nos hambúrgueres e salsichas vendidos na feira, e que Fernanda e Nicole compram para complementar sua dieta vegana, tem origem na propriedade da família Primel, a 250 km de Porto Alegre. Junto com os dois irmãos, Alceu Primel toca a fazenda de 50 hectares localizada em Santo Antônio do Palma, no norte gaúcho. Cerca de 30 hectares são utilizados para o plantio de soja, mas sempre em rotação com outras culturas. Alceu se orgulha de dizer que na terra deles se planta de tudo: soja, milho, feijão, trigo, centeio e aveia, além de frutas e verduras que eles vendem na feira ecológica da vizinha Passo Fundo. O próximo passo é começar a processar os grãos ali mesmo na propriedade e comercializar a própria farinha orgânica.
A produção não-orgânica nunca foi opção para os Primel, já que os pais dos guris sempre proibiram os filhos de trabalharem com produtos químicos. Na época, eram motivo de piada na região: “Nos primeiros anos diziam que a gente era burro, era atrasado, no colégio nos chamavam de ‘os ecológicos’, não sei mais o que… Teve um período muito difícil em que desmereciam o que a gente fazia, e hoje a gente anda de cabeça levantada por causa do orgulho do que a gente faz”.
Numa época em que ser “orgânico” era coisa de outro mundo, eles mesmos faziam os próprios produtos biológicos para controle de pragas. A opção sequer existia no mercado. Os Primel aliaram os conhecimentos herdados dos pais com a vontade de estar sempre aprendendo. Fizeram cursos, estudaram e foram aplicando as técnicas na propriedade: “Tem que ter conhecimento. A terra, que tipo de terra tu tem? Tem que conhecer o solo. Não é toda terra que tu pode produzir horta, raiz, cereal. Tu mesmo vê como tá a planta, se tá doente ou não. Vê o solo, se tem que corrigir. Se vêm inço, tem que ver por que o inço tá vindo. Por que essa praga tá vindo, essa doença? Com tantos anos tu vai adquirindo o conhecimento de toda a tua cadeia de produção. A natureza nos ensina, e nunca termina o que ela pode ensinar pra gente”.
Como se não bastassem os desafios impostos pela natureza, os Primel precisam se preocupar com os impactos das lavouras vizinhas, na sua maioria monoculturas transgênicas e tratadas com agrotóxicos. Alceu conta que muitas vezes tem que deixar de usar uma área por causa do risco de contaminação, ou então construir uma barreira verde para evitar a deriva (quando o pesticida é levado para fora da lavoura, normalmente pela ação do vento). Outras vezes os produtos químicos acabam matando as espécies amigas da lavoura orgânica, como lagartas e vespinhas que ajudam no controle das pragas inimigas.
Esse cuidado constante é um dos principais entraves à expansão do plantio de orgânicos, no entender de Marcio Alberto Challiol: “Dá mais trabalho porque tanto o agricultor quanto o técnico têm que ser presentes na lavoura, por não trabalhar com o calendário químico do convencional. Então existe uma atenção e um olhar mais holístico para propriedade, que dá mais trabalho e é um pouco mais complexo porque envolve muitos fatores biológicos e não só químicos”. Além da presença constante na propriedade, o cultivo orgânico exige cuidados especiais, como rotação de culturas, capina com máquinas antes e depois do plantio, e em alguns casos inclusive a capina manual.
“O produtor realmente tem que gostar e ter uma dedicação e uma determinação por fazer, porque senão ele desiste do processo. Essa é a diferença dos agricultores que têm ficado no sistema, ele vê que embora seja mais difícil de fazer, as vantagens de trabalhar com uma agricultura limpa compensam”. A compensação também é sentida no bolso. A Gebana paga entre 30% e 50% a mais pela soja orgânica em relação ao preço do produto com agrotóxicos. É o chamado “prêmio”, que pode aumentar ainda mais se o produtor tive a certificação de Comércio Justo.
O Fair Trade, ou Comércio Justo, se apresenta como uma alternativa viável e concreta frente ao sistema de comércio tradicional. Tem como um dos pilares a relação direta entre produtor e comprador, melhorando as condições de troca e reduzindo a dependência de atravessadores e do mercado global de commodities. Entre os princípios que regem o Comércio Justo, estão a transparência dos processos, o pagamento de preço justo pelos produtos e o respeito ao meio-ambiente. Para usar o selo Fair Trade, é preciso obter uma licença junto à Fairtrade Labelling Organizations International ou às licenciadores nacionais autorizadas. |
A diferença de preço torna o produto economicamente viável. Em termos de custo, a lavoura orgânica costuma exigir um investimento maior em adubos, mas o gasto com produtos fitossanitários tende a ser igual ou menor que o do cultivo tradicional: “Porque a gente faz aplicações somente após o monitoramento das lavouras. A gente acompanha as áreas, normalmente a cada semana ou no máximo a cada quinze dias. Então qualquer aplicação, seja um agente biológico, uma vespinha, um fungo, é feita em cima de um critério agronômico muito claro, ao contrário do tradicional que é feito em cima de um calendário. Ele tem uma segurança de aplicar somente quando precisa”. Márcio lembra que os custos de produção dependem muito do quanto o agricultor está disposto a investir: “Temos produtores médios, de perfil bem profissional, muitos deles agrônomos, que buscam tecnologia. Querem produzir mais e logicamente têm um custo maior. Mas isso vale muito a pena no orgânico porque cada saca a mais que você produz tem um prêmio final que compensa muito bem esse custo adicional”.
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