Edifício-sede do BNDES, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Foto: Marcio Isensee e Sá.
Durante mais de uma década, o BNDES concedeu crédito, comprou títulos e participação no capital das grandes empresas abatedouras de gado na Amazônia. Segundo dados do banco, entre 2005 e 2016 foram desembolsados R$ 31,2 bilhões para o setor de proteína animal. Apenas os grupos JBS, Bertin e Marfrig, fortes na Amazônia, receberam R$16,2 bilhões, ou 52% destes recursos. Tal volume e concentração de crédito seguiram a política do BNDES de formar campeões nacionais da indústria. De fato, nesse período, o JBS comprou o Bertin e se expandiu pelo mundo, enquanto sua receita anual subia de R$4 bilhões para R$170 bilhões.
A partir de 2009, investigações do Greenpeace e do Ministério Público Federal mostraram a ligação entre a pecuária e o desmatamento na Amazônia. Ficou demonstrado que pastos ocupavam 65% da área total de floresta perdida e que a carne de desmatamento passava por grandes empresas frigoríficas e chegava a supermercados nos maiores centros do país. A partir da prova desta ligação, Greenpeace e MPF obtiveram de grandes frigoríficos acordos para não comprar gado de desmatamento. Em paralelo, o BNDES ensaiou exigir de fazendas e frigoríficos regras ambientais ainda mais duras para fechar operações financeiras. Entretanto, não cumpriu o que prometeu.
“O investimento do banco concentrou o setor para, supostamente, melhorar a qualidade. Esse poder da concentração deveria também ser usado para estimular a sustentabilidade de toda a cadeia, inclusive da fazenda. Como banco público, o BNDES poderia ter liderado o setor bancário para coordenar a solução,” diz Paulo Barreto, pesquisador sênior da ONG Imazon.
Sem rastro
Em 2009, saíram as normas do BNDES para evitar fazer operações financeiras com quem derruba a floresta. A principal delas era de que, em 2016, todos os animais abatidos deveriam ser rastreados do nascimento até o abate. Cada animal receberia um código de identificação, na forma de brinco ou chip, que permitiria o acompanhamento das propriedades pelas quais passou durante todo seu período de vida. Caso fosse detectado que parte de sua criação aconteceu em fazendas com desmatamento ilegal, sua comercialização seria impedida.
Em 2018, dois anos após o prazo final, a regra do rastreamento não foi cumprida ou sequer começou a ser implementada.
O BNDES admite que falhou na implementação do rastreamento do gado, mas afirma que foi bem sucedido em aplicar uma segunda norma: não emprestar a frigoríficos que compram gado de fornecedores inclusos na lista de áreas embargadas do Ibama. A regra permite controlar o último elo da cadeia, as fazendas de engorda que vendem diretamente aos frigoríficos.
Ocorre que, por não exigir o rastreamento do gado, não há controle sobre as fazendas indiretas, aquelas onde o gado nasce e faz parte da engorda, e que não vendem para frigoríficos, mas para outras fazendas.
“Na época, a gente tinha um sonho de que isso fosse implementado até 2016. Foi uma aposta, e não aconteceu conforme imaginávamos”, diz Daniela Baccas, chefe do Departamento de Meio Ambiente do BNDES. Ela diz que os problemas não se devem a uma falha do banco, mas a fatores externos. “Não foi uma coisa do banco, ou dos frigoríficos. Em dez anos, o país não conseguiu chegar a uma conclusão sobre como fazer isso”.
Daniel Azeredo, procurador do Ministério Público Federal, discorda e afirma que o banco poderia ter liderado este processo: “O BNDES não só pode, como deve puxar [o combate ao desmatamento]. Como agente financeiro, o banco tem o poder de estabelecer requisitos”.
Para Barreto, não se pode atribuir a responsabilidade de falta de controle ao país: “Os brasileiros não decidiram que queriam financiar a pecuária ou os frigoríficos. Foi uma decisão do governo em parceria com os empresários e, portanto, eles deveriam ter agido para garantir a sustentabilidade”.
Bancos como vigilantes do desmatamento
Em fevereiro de 2008, a Polícia Federal e o Ibama realizaram as operações Arco de Fogo e a Guardiões da Floresta, ações sem precedentes contra o desmatamento na Amazônia. Entre março e agosto daquele ano, mais de 300 serrarias foram fiscalizadas e 59 pessoas foram presas em municípios críticos da fronteira agropecuária.
Também no início de 2008, para reprimir o desmatamento ilegal pelo lado financeiro, o governo criou a primeira norma para restringir crédito a desmatadores, a resolução 3.545 do Conselho Monetário Nacional (CMN), que vale para todos os bancos do país e exige a comprovação da regularidade ambiental de qualquer pecuarista que toma empréstimos na Amazônia. Para conseguir o crédito, o fazendeiro passou a ser obrigado a apresentar documentos como o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) e uma declaração de que não existem embargos de áreas desmatadas ilegalmente na propriedade.
A legislação, porém, limitava-se ao licenciamento ambiental das fazendas. Não havia restrições aos frigoríficos que comprassem gado de áreas desmatadas.
O BNDES cumpriu a Resolução 3.545, mas ela não foi eficiente para coibir o desmatamento. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União, “Apesar de não terem sido identificadas ilegalidades na concessão de crédito rural, constataram-se incoerências entre políticas de fomento ao setor agropecuário e os programas de combate ao desmatamento da Amazônia”. O documento acresce: “Mesmo respeitando as normas ambientais em vigor, investimentos de grande volume com financiamento público a atividades que são vetores de desmatamento, como é o caso da pecuária, podem estimular o avanço da fronteira agropecuária em direção à floresta”.
BNDES só agiu após Greenpeace e MPF
Em 2009, o Greenpeace publicou o relatório “A Farra do Boi na Amazônia”, mostrando que os frigoríficos mantidos com dinheiro público compravam de fazendas onde havia desmatamento. Com base no documento, o Greenpeace pressionou e obteve compromissos públicos com grandes frigoríficos, como JBS, Marfrig e Minerva.
Em paralelo ao relatório do Greenpeace, também em 2009, o Ministério Público Federal do Pará fez suas próprias investigações e descobriu que os grandes frigoríficos da região compravam gado de áreas desmatadas. Entre eles, estava a JBS, financiada pelo BNDES. A investigação do MPF resultou numa ameaça de processo e da cobrança de multas que somavam 2 bilhões de reais. Houve uma negociação e o MPF impôs, primeiro a grandes frigoríficos do Pará, um Termo de Ajuste de Conduta, que ficou conhecido como “TAC da Carne”, que obrigava aos frigoríficos signatários não comprar carne de desmatamento. Quase dez anos depois, os acordos se espalharam pelos estados da Amazônia e hoje englobam 44 empresas e 84 plantas.
“Em 2009, teve um contexto muito grande da questão de desmatamento associada a cadeia de pecuária bovina amazônia”, lembra Baccas, citando as ações do Greenpeace e do Ministério Público Federal (MPF). Assim, não por iniciativa própria, mas para se adequar às mudanças que ocorriam no combate ao desmatamento, o BNDES criou suas normas.
O movimento era inovador, pois era a primeira vez que o BNDES tentava controlar fornecedores dos frigoríficos, seus clientes. Segundo Baccas, no primeiro momento aconteceu uma melhora no monitoramento, com “resultados impressionantes”. Para ela, o controle dos fornecedores diretos dos frigoríficos teve êxito, já que foram excluídos aqueles que constavam da lista de autuações ambientais do Ibama.
O banco, porém, admite que nunca conseguiu chegar ao ponto central desse problema, o gado fornecido de maneira indireta. Para isso, seria necessário exigir o rastreamento do gado.
Segundo Baccas, existe um esforço de frigoríficos, como JBS e Marfrig, e do BNDES para que isso aconteça, mas é impossível sem a criação de bases oficiais que permitam implementar o rastreamento do gado de forma prática. “O que você precisa para a norma pegar? Você precisa ter dado centralizado e de fácil aferição,” diz.
Baccas usa como exemplos a lista suja de empregadores flagrados com trabalho escravo, mantida pelo Ministério do Trabalho, e a de áreas embargadas, do Ibama. “Se você tem uma lista centralizada, eu consigo exigir e fazer cumprir as regras, porque tenho material para isso. Agora, há coisas que não tem como centralizar em uma lista, em um dado oficial. De onde você vai pegar o dado? A auditoria vai auditar de onde?”, questiona.
[su_box title=”Principais exigências do BNDES para empréstimos ao setor da pecuária:” style=”soft” box_color=”#d0d0d0″ title_color=”#000000″]- Não estar na lista de autuados por crimes ambientais do Ibama;
– Não estar na ‘lista suja’ do trabalho escravo;
– Não ter condenação por invasão de terras indígenas, conflitos agrários e grilagem;
– Rastrear todos os seus animais do nascimento ao abate, a partir de janeiro de 2016.
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Estagnado
A mais ambiciosa norma do BNDES não foi aplicada, mas Baccas acredita que a norma de monitoramento dos fornecedores pode ser atualizada. Ela diz que o TAC da carne, que funciona por princípio similar, foi atualizado diversas vezes desde a sua criação, enquanto a norma do banco ficou estanque. Entre as atualizações, ela cita incorporar a exigência do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os dados de satélite do Prodes. Entretanto, os primeiros TACs da Carne de 2009, no Pará, assinados entre MPF e frigoríficos já exigiam o CAR e os dados do Prodes.
No começo de 2017, o Greenpeace apresentou sugestões de melhoria aos padrões BNDES. A principal delas é incorporar a análise da produtividade de cada fazenda, verificando a quantidade de cabeças de gado produzida por hectare. Isso inibiria a “lavagem” de gado, pois uma quantidade de cabeça de gado por hectare superior ao normal indicaria que aquela propriedade estaria sendo usada como meio para tornar legal um boi de área embargada. A organização também pediu mais transparência, ao reivindicar que o BNDES exija dos frigoríficos tornar públicos os dados de monitoramento das suas fazendas fornecedoras.
Essas melhorias seriam bem vindas, porém, não incluem a rastreabilidade de cada animal. O próprio Greenpeace estima que 50% do gado abatido passe por fazendas intermediárias, que escapam do monitoramento.
“Você tem outras medidas que podem ser tomadas para monitorar o gado, mas a mais efetiva é, sem dúvida, a rastreabilidade. As outras são paliativas”, diz Azeredo.
“O principal ponto é a rastreabilidade, ela é a medida que seria transformadora e não aconteceu. Teria todo um efeito de mudança na cadeia produtiva”, concorda Barreto.
Baccas aponta que a falta de rastreabilidade não foi um problema do banco, mas uma falta de exigência de todo o mercado. “Será que o BNDES é o único ator para isso? Se ele fizer essa exigência, o cara não vai se financiar em outros lugares?”, diz. “Você tem várias frentes para atuar no desmatamento. Quando você pensa no financiamento, é uma pontinha aqui, uma pontinha de quem procurar o financiamento, de quem se financia com outras coisas.”
Barreto, porém, reforça o potencial de liderança do banco: “Existe uma resistência do setor, do lado dos fazendeiros, para fazer o rastreamento. Mas eles são pragmáticos. Se exigir, fazem”.
Entre 2006 e 2017, anos dos dois últimos censos agropecuários, a área de pasto na Amazônia Legal subiu de 42,4 para 50,6 milhões de hectares. Esse aumento de 8,2 milhões de hectares significa, em média, um acréscimo anual de 747 mil campos de futebol – 1 hectare equivale a um campo de futebol – de pasto na região. O BNDES foi um ator essencial nessa expansão ao prover recursos na ordem de bilhões de reais à pecuária, principalmente através dos grandes frigoríficos. Mas se liderou o fomento ao setor, não se pode dizer que o BNDES assumiu o mesmo papel na liderança de exigências para conter o desmatamento, cuja principal causa é justamente a pecuária.
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